abril 16, 2009

Miscigenação de família

O Censo do IBGE-2002 divulgou que houve uma maior miscigenação de raças na população brasileira: naquele ano apenas 40,6% dos casais tinham cônjuges da uma mesma cor, enquanto em 1991 o percentual era de 48,8%; e eu, que descendo de família multiplamente miscigenada, posso ilustrar esses dados com registros bem anteriores a esta data: o casamento de meus avós maternos, um descendente de portugueses semi-analfabetos com uma negra de origem escrava com formação musical e uma certa erudição por volta de 1920 e o dos meus tios-avós (o irmão negro da minha avó com a irmã branca do meu avô) uns dez anos depois.
Foto: Minha mãe, sua prima-irmã e meu pai,então namorado, futuro marido.


Historiar miscigenação no nosso país é bem mais complexo que avaliar índices ligados a questões raciais; não se trata de enfatizar ou negar misturas sociais, políticas e étnicas e sim pensar culturalmente as sociedades à luz desses fatores. Comemorando seus oitenta anos, idade que a minha miscigenada mãe também completaria esse ano, a Mangueira trouxe ao carnaval de 2009 um enredo sobre o povo brasileiro e as heranças da miscigenação transportando-nos para o século 15, mostrou o primeiro contato do homem branco com o indígena, falou das habilidades negras trazidas do continente africano, da cultura artesanal dos povos do sertão e da marcha implacável e povoadora dos bandeirantes pelo interior do país, entre outras evidências e dados de que o Brasil foi e é realmente multicolorido, muito além da questão da cor... A questão do racismo no Brasil, como em outros países do mundo, está muito mais ligada à aspectos políticos e financeiros do que à quantidade e/ou qualidade de uma miscigenação que é parte da própria formação do mundo.



Foto: Meu sogro e uma miscigenada equipe de atletismo do Vasco da Gama por volta dos anos 50.

Infâncias...

No livro “História Social da Criança e da Família”, o historiador francês Philippe Ariés estuda a inserção da criança na vida social desde a Idade Média até os tempos modernos, quando o papel da família transformou-se estruturalmente. A História da Criança no Brasil e no mundo passa pela construção das relações de poder da sociedade; principalmente no que se relaciona as minorias: mulheres, escravos, negros, índios e crianças. Foi um longo processo histórico até que as conceituações sobre infância submersas em visões históricas do adulto se modificassem em busca da valorização e da preocupação real com um ser social ascendente que também interagia com as instituições. E, mesmo assim a infância não foi nem é a mesma para todas as crianças e mais do que as diferenças de época, as de classe, gênero e raça fizeram e fazem com que nem todos vivam a infância da mesma forma. Pesquisando fotos antigas, observando vestuários, posturas, semblantes, dentro de uma linha de tempo é possível quase que datar quando a criança começa a deixar de ser uma sombra, uma cópia do adulto para parecer com uma criança...

Foto: Menino de origem alemã, órfão criado pelos avós, 1927.

Foto: Menino, 1937.

Foto: Crianças, 1967.


Tempos de Pedro II

“... Dificilmente se hoje um magnata pretendesse oferecer ao seu filho preceptores da mais alta qualidade, poderia superar o nível dos professores do Colégio Pedro II do meu tempo, o catedrático da disciplina de Canto Orfeônico entre 1949 e 1956 era, ... Heitor Villa Lobos. Tínhamos Canto Orfeônico nos quatro anos de ginásio. ... entrei em desespero pois não captava as notas musicais. Colei os ditados musicais do meu colega... Era 1951 e o presidente era Getulio Vargas. Voltou a Parada da Raça e o culto dos valores nacionais. Trezentos alunos do CPII iriam fazer uma apresentação em frente ao Ministério da Educação. O coral cantaria o Canto do Pajé de Villa Lobos e seria regido por ele. ... o anhangá fugiu, fugiu, fugiu/ oh manhã de sol, manhã de sol/ anhangá fugiu... O arranjo era em quatro vozes. ... No ensaio, ... Villa Lobos chama as professoras e as adverte – tem um menino na segunda voz desafinando. ... – era eu. Ouvido zero absoluto. ... A partir desta época minha mãe, coruja como ninguém, se gabava com os vizinhos – o meu filho foi distinguido pelo Villa Lobos.... “ (Liberato Ferreira, ex-aluno)
Em meados dos anos 70, alguns anos depois do Liberato, eu também estudei Canto Orfeônico no CPII e catedráticos como Celso Cunha, Jairo Bezerra e Rocha Lima entre outros eram os professores; apesar da disciplina rígida, as aulas, os professores, os bailes, o grêmio, as competições esportivas, o coro orfeônico, a banda de música e os desfiles cívicos atravessaram o tempo como algo mágico e o Colégio, símbolo de tradição e saber, foi responsável por muitos profissionais, ex-alunos apaixonados, de renome no cenário nacional.

Para mim foi um período fantástico, muito menina vivi a época da repressão, dos movimentos estudantis, dos seqüestros dos embaixadores, dos exilados, dos desaparecidos políticos, das músicas proibidas dentro de uma instituição federal de educação tradicional, mas que independente da época e do sistema também abrigava professores sensíveis e empiricamente inovadores que levaram muitos jovens a iniciar suas trajetórias políticas no Grêmio Estudantil do colégio.

Teatro de Revista

1958... o ano da bossa nova, do rock'n roll, das chanchadas e dos programas de auditório na televisão, da conquista da primeira Copa do Mundo e foi também o ano em que a Miss Brasil, Adalgisa Colombo quase conseguiu ser Miss Universo. Nessa época, o teatro de revista ainda tinha suas vedetes e o Stanislau Ponte Preta escolhia as Certinhas do Lalau. Pode-se dizer, sem muito exagero, que o teatro de revista foi o prisma em que se refletiram a música, a dança, o carnaval, a folia, os gostos e os costumes do brasileiro e as várias faces do anedotário nacional através dos tempos, antes de entrar em decadência devido a competitividade com os novos meios de comunicação de massa. No período de seu declínio a sociedade brasileira vivia uma modernização forçada, expressa pelo conhecido projeto do então presidente Juscelino Kubitschek: 50 anos em 5. O Teatro de Revista Brasileiro surgiu em 1859 inspirado no modelo francês, enredos simples ligando quadros independentes que brincavam como anedotários populares ou acontecimentos nacionais. Começou em 1859 e foi se transformando com a vinda das companhias francesas: o corpo feminino foi desnudado, despido das grossas meias e sendo mais valorizado em danças e quadros musicais.
Em 1924, inicia-se um período de grandes espetáculos com poucas e grandes estrelas flutuando entre a comicidade, a crítica política e números musicais e de fantasia. O elemento espetacular começa a ganhar força e em seu apogeu acontecem as produções de grandes espetáculos com elenco numerosos, grandiosas coreografias, cenários e figurinos luxuosos e as espetaculares vedetes que viraram a cabeça de famosos estadistas e afortunados senhores de família. Quando o gênero começa a apelar fortemente para o escracho e para o nu explícito entra em decadência e praticamente desaparece no final da década de 60. Mas, antes disso, por volta daquele movimentado 1958, uma jovem vedete, cujo nome não estou familiarmente autorizada a revelar, fez o seu quinhão de sucesso nos palcos do Rio e São Paulo...

Arpoador

Entre o Forte de Copacabana e o início da praia de Ipanema, o Arpoador tornou-se conhecido pela pedra de mesmo nome que avança mar a dentro, de onde se arpoavam as baleias no Rio de Janeiro colonial - a caça à baleia, junto com a produção de açúcar e o comércio de madeira nativa foram importantes atividades econômicas no período. Entre os anos 20 e 30 existiam apenas dezoito construções residenciais na, então tranqüila, Praia do Arpoador e apenas entre 1920 e 1950 surgiram ruas no bairro... Mas, quando, durante a Segunda Guerra Mundial, o Rio de Janeiro serviu de base para os aliados, soldados americanos desembarcaram aqui trazendo em seus sacos de viagem pés de pato, máscaras de mergulho e pranchas de surfe e foi aí que nossas praias começaram a ser utilizadas como local de lazer e entretenimento, deixando de ser freqüentadas somente por pessoas que buscavam cuidados para a saúde. O surfe brasileiro nasceu assim e foi se desenvolvendo e tornando o Arpoador mais freqüentado, as ondas eram surfadas em pequenas pranchas de madeira, de joelhos ou de bruços, como no bodyboard”. Um pouco mais tarde, o Arduíno Colassanti, o Paulo Preguiça, o Luiz Bisão e dizem que também o meu sogro, aquele mesmo que tentou assistir um desfile em Copacabana de cabeça para baixo, já surfavam em pé em pranchas de madeira sem quilhas, conhecidas como “portas de igreja” feitas com tábuas de compensado por um “cara” na Ilha do Governador, até conhecerem as pranchas de fibra de vidro que um piloto da Pan Am trouxe debaixo do braço. Até meados dos anos 40 o local ainda era um areal meio vazio e as raras casas davam frente para a rua e fundos para a praia...


Mas, já nos anos 50, quando o surfe, a pesca submarina e os mergulhos do Saramangue, a pedra-trampolim, agitavam o bucólico cenário, os então jovens surfistas ainda conseguiam “paquerar as uvas” depois de ter descansado em areias semi-desertas...

Avós de Petropólis

Quando meu marido diz que o nosso encontro estava escrito nas estrelas, ele não está simplesmente sendo romântico... Quando nos conhecemos, há vinte e quatro anos atrás, não sabíamos que duas de nossas avós, jovens negras nascidas uma em 1907 e a outra em 1908, passaram sua juventude exatamente no mesmo lugar, trabalhando no mesmo ramo de atividade, freqüentando os mesmos saraus familiares, onde as valsas e modinhas eram freqüentes e se casando com filhos de imigrante, um português outro alemão. Se elas se conheceram? Infelizmente, não tivemos a oportunidade de comprovar.




Quando elas nasceram a escravidão estava finalmente terminando, a continuação do processo abolicionista se dava pelas mãos das massas cansadas dos castigos; em 1910 o marinheiro negro João Cândido, era o líder do motim contra uma permanência escravista na Marinha: o castigo das cem chibatas em marinheiros rebeldes que eram geralmente negros e pobres. Os revoltosos foram mortos quando depuseram armas acreditando num acordo, mas os limites haviam sido estabelecidos. Os negros se inseriram definitivamente na sociedade como cidadãos livres e operários atuantes nos novos tempos que se iniciavam, embora ainda fossem negros.
O desenvolvimento econômico de Petrópolis, e outras regiões serranas, veio através de sua ligação com o governo imperial e por ter sido o lugar escolhido para a implantação de um projeto de substituição da mão-de-obra escrava pela imigrante.


O governo esperava que negros e mestiços se casassem com imigrantes europeus para “diluir” a raça negra na população brasileira, meus avós acreditaram e aqui estou eu... pele clara, olhos verdes, cabelos lisos e traços faciais que... em nada disfarçam o meu pé na cozinha...

Meus portugueses

A partir da metade do século XIX a imigração portuguesa no Brasil teve caráter quase que exclusivamente urbano, em sua maioria, extremamente pobres, vinham em família, com grande número de mulheres e crianças e ao chegar procuravam parentes ou se instalavam em pequenos cortiços. A maior parte deles dedicou-se ao comércio, pequenas vendas e padarias, e chegaram a dominar essas atividades em várias regiões; outros, tornaram-se operários nas nascentes indústrias brasileiras. Nas origens das formações modernas de alguns bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro, atualmente conhecidos como Piedade, Encantado, Higienópolis, Del Castilho e outros, lotes foram vendidos a esses imigrantes; alguns mais abastados adquiriram terrenos nas partes baixas, enquanto que os mais pobres nas partes altas onde os lotes eram mais baratos, o que indicia os primórdios de uma favelização diferente da que se conhece nos dia atuais. Historicamente, alguns dados são utilizados para explicar esse fenômeno, e um deles é justamente a extinção dos cortiços e a necessidade de buscar moradia em lugares economicamente acessíveis.Por volta de 1906, quando mais de cento e trinta mil portugueses já viviam no Rio de Janeiro (16% da população da época), se iniciou a minha família paterna. Meu avô chegou ao Brasil solteiro e casou-se com a filha de portugueses já estabelecidos na Rua Miguel Cardoso, no bairro do Encantado, uma rua alta “de ladeira” onde várias casas de cômodos eram divididas por famílias portugueses e brasileiras em condições financeiras similares.




Meu pai, o segundo de três irmãos, nasceu em 1927, quando o Brasil já não precisava mais da mão de obra imigrante para trabalhar na agricultura e nas fábricas, pois a população brasileira, em grande parte aumentada por conta dos inúmeros casamentos interraciais, já supria a demanda. Casado com uma vizinha, minha amada mãe, sua primeira namorada, morena filha de uma negra linda e de um filho de portugueses;



constituiu família de dois filhos - eu e meu moreno e querido irmão, miscigenação pura - que viveram sua infância e adolescência nessas cercanias curtindo carnaval e festa junina de rua, sendo “vigiados” e cuidados por mil olhos amigos do “Branco”, meu pai, e “Pardal”, meu tio, rapazes outrora “danadinhos” e à época respeitáveis senhores de família...

Copacabana

No finalzinho dos anos 50 e principalmente entre os anos 60 e 70, o bairro de Copacabana já estava começando a ficar saturado de prédios de apartamentos quando foram liberados os gabaritos pra construções de 12 andares prejudicando a visão do contorno das montanhas. Foi esse irresístivel e desenfreado desejo de viver na “Princesinha do Mar” - cantada em verso e prosa e samba... - que também propiciou o surgimento dos primeiros edifícios de apartamentos conjugados, dimensões mínimas, conhecidos como “JK” (janela e kitchnett = quitinete), mas que o humor popular associou as iniciais do então presidente que viabilizou o inicio desse “boom” imobiliário que acabou transformando Copacabana numa verdadeira selva de prédios que se reproduziram vertiginosa e desordenadamente.

Foi aí que, do alto de qualquer um desses prédios, num ensolarado dia do ano de 1957, o meu sogro tentou assistir, de cabeça para baixo, ao desfile dos presidentes de Portugal, General Craveiro Lopes, e do Brasil, Juscelino Kubsticheck, pela Praia de Copacabana. Coisas da juventude! ...

Praça Paris

Em algum dia do ano de 1952, moradoras do Encantado, bairro de subúrbio carioca que foi batizado assim por conta de uma lenda que fala de um charreteiro que sumiu como que por encanto nas águas então límpidas do Rio Faria, minha mãe e sua irmã pegaram um dos 16 lotações da Empresa de Lotações Estrela Ltda, inaugurada em 20 de julho de 1950, e que explorava a linha Encantado - Praça Paris e foram passear...


Isto aconteceu, é claro, bem antes que a Praça Paris desaparecesse em 23 de junho de 1970 a partir do cravamento da primeira estaca das obras da construção do metrô. A praça, localizada no bairro da Glória, foi construída durante a gestão do então Prefeito Antônio Prado Júnior, entre 1926 e 1930, com projeto do urbanista francês Alfredo Agache; seu traçado reproduzia a elegância de um jardim parisiense e abrigava obras de arte e esculturas. Entre essas obras, uma estátua eqüestre do Marechal Deodoro da Fonseca, em bronze. Foi restaurada e reinaugurada em 1992, agora cercada por grades, visando a sua preservação.

Meu bisavô materno

Contestar é genético... Em 1940, meu bisavô João Ramos dirigiu-se a redação do jornal Diário de Notícias para denunciar os baixos valores atribuídos as aposentadorias dos trabalhadores da área têxtil. Esses trabalhadores colaboraram no crescimento do primeiro surto industrial brasileiro iniciado em 1880.




A importância desse surto para o Rio de Janeiro é tamanha que, das indústrias de fiação e tecidos de algodão do então Distrito Federal que participaram da Exposição Nacional de 1908, todas haviam sido fundadas até o ano de 1891.Algumas fiações desta época no Rio de Janeiro são: Tecidos Aliança, Confiança Industrial, Tecidos Carioca, Tecidos Corcovado, a Fábrica São Cristóvão e a Fábrica Cruzeiro.E, em Petropólis (origem da minha, graças a Deus, miscigenada família)a Imperial Fábrica de Tecidos São Pedro de Alcântara e a Fábrica de Tecidos Cometa, onde trabalhou o meu bisavô e onde hoje só existem as ruínas das chaminés.